18 de abril de 2010

Ausência

Sigo afastado por conta da dengue. A sensação é de total inércia e me impede de escrever com a alma, assim como ler e comentar os blogs que gosto. Voltarei a fazê-lo assim que estiver melhor, bjos a todos!

4 de abril de 2010

UTOPIA

Estamos em 2046 e o mundo não é nem sombra daquele lugar 'bonito e tranquilo pra gente se amar' que você conhecia. O planeta sucumbiu, graças à irresponsabilidade humana e seus interesses escusos, que juntos contribuíram para o que parecia impossível: destruir tudo a sua volta e desencadear a fúria irreversível da natureza. As calotas polares derreteram, os oceanos tomaram os continentes. Glub, glub, glub... Paradoxalmente, áreas desérticas se abriram no coração da África, incêndios de proporções descomunais tomaram a tundra soviética e o Canadá. Populações foram dizimadas pela fome, doenças e toda sorte de desastres naturais. O subir das águas só poupou aqueles que se encontravam em altitudes superiores a 1.000 metros.


O destino do homem foi, enfim, selado por suas mãos irresponsáveis cheias de sangue.


Relaxe. Se o ambiente lhe parece de total desolação, há um motivo para se alegrar: você conseguiu se salvar. Tomou o vácuo migratório com ligeira antecedência, deixou para trás seus bens materiais e rumou com a família e amigos para um dos pontos altos. A escolha foi sua: Chapada dos Veadeiros, Diamantina, Serra da Mantiqueira. O importante foi se antecipar, acreditar nos boatos e encher-se de coragem. Parabéns! Você está entre os 30 milhões de sobreviventes do planeta Terra (lembre-se que em 2007 a população do planeta chegava a quase 7 bilhões de habitantes), prontos para iniciar uma nova jornada.




Portanto, mãos a obra. Paus, pedras, galhos, folhas... Ou você achou que era só apertar o interruptor? Helloouuuooou, a fase do tudo fácil ficou lá atrás, sua sobrevivência e a dos seus depende, daqui em diante, daquilo que você for capaz de fazer. Bem vindo ao mundo pós-dilúvio capítulo II!



Os trabalhos começam, as comunidades se dividem em busca de locais apropriados para montar suas barracas e iniciar o novo ciclo. A sua tem 45 pessoas: você e sua mulher (ou marido), seus filhos, irmãos e irmãs com seus respectivos agregados e dois casais amigos e suas famílias. Seu vizinho e o cachorro vieram junto, assim como um casal de idosos que encontraram pelo caminho e a quem deram abrigo. Hora de recomeçar: como líder, preservar cada membro desta nova comunidade é a sua tarefa!



Seu primeiro desafio: a uma nova sociedade, sem estruturas pré-estabelecidas e sem vícios, não resta alternativa que não seja desenhar novos princípios. Além dos éticos, como o respeito mútuo, a verdade em essência e o espírito de solidariedade, você deverá organizar os práticos, como a organização do trabalho, a assistência irrestrita, a divisão do que for obtido (lembre-se que é a sobrevivência da sua comunidade que está em jogo. Acumular individualmente mais do que o necessário e desequilibrar o balanço é prejudicar filhos, familiares ou amigos, todos que mantém laços afetivos com você. Não os decepcione!). Em um mundo devastado, você deverá lidar com os aspectos funcionais que surgem em primeiro plano: encontrar comida para saciar a fome, dividir cobertores para proteger do frio, manter a saúde em dia e construir abrigos. Todos os 45 membros de sua comunidade serão beneficiados indistintamente, criando os pressupostos para a nova vida que se abre em perspectiva.



Chegamos a 2056. Dez anos se passaram e sua comunidade manda muito bem, meus parabéns! Conta agora com 66 membros, já que seus amigos tornaram-se avós e outras duas novas famílias foram incorporadas (não se adaptaram ao sistema que havia sido estabelecido em outra comunidade, onde privilégios eram concedidos a indivíduos que haviam acumulado maior riqueza na vida pré-dilúvio). As necessidades básicas foram satisfeitas e seguem a contento, todos trabalham e gozam de ótima saúde. Hora do líder pensar em outras necessidades, não?



O dinheiro não serve pra nada. O que se utiliza como moeda de troca , em todas as comunidades serranas, são toras de madeira. Você sugere que uma biblioteca seja montada e a comunidade aprova. Compra, de uma comunidade vizinha, 15 livros por 15 toras. Um sucesso! Quando vocês se preparam para comprar mais 10 livros, a filha mais nova de uma das famílias que havia se incorporado à comunidade contrai catapora. O remédio disponível custa 3 toras e a comunidade, naquele momento, não dispõe de mais do que 10 toras para negociar. Você sugere que se compre 7 livros e que o remédio seja comprado com as 3 toras restantes. Aprovado! O sacrifício, por assim dizer, não gerou desequilíbrio na comunidade e você, como líder, ganhou mais uns pontinhos.


Anos depois, o projeto de construção de uma piscina é abortado em razão das chuvas, que destruíram parte da horta e a disponibilidade de alimentos para consumo. Não haverá comida para todos e será preciso desviar parte dos recursos destinados à piscina para compra. O equilíbrio da comunidade é então novamente refeito e ninguém passa fome. A piscina, enquanto projeto, fica temporariamente postergado, assim como toda outra necessidade que não tenha, por princípio, preservar a integridade da comunidade. Os anos se passam e ela cresce em ritmo exponencial, mantendo seus ideais e, principalmente, sua unidade. Novos líderes surgem, seu trabalho é preservado, uma era de ouro e prosperidade se inicia...



Fim do sonho.


Somos o exemplo vivo de que não funciona assim. Enquanto lidamos com 66 indivíduos, cujos laços de sangue e afinidade zelam pelo bem estar da comunidade em qualquer circunstância, tudo bem. Em uma estrutura como essa, quem é que em sã consciência deixa faltar alimento a um filho ou não dá abrigo a um amigo? Não compra remédios para um doente ou não manda fazer a palmilha da criança que nasce com o pezinho torto? Ou botinha, que seja. 66, 99, 126, 216... Mas e depois? Atinge-se um ponto em que o crescimento descontrolado sobrepõe os princípios antes adotados e transforma cada homem em uma ilha, em um poço de desejos outros que já não se alinham com os ideais da comunidade. Vira o samba do crioulo doido, cada um por si e salve-se quem puder. Nasce o vigarista, o corrupto, o explorador. Nascem modelos que não mais atendem a comunidade, mas o estilo individual de cada um. E aí está o formato da sociedade em que vivemos, do consumo desenfrado e da voracidade sem limites. Não é à toa que chegamos a beira do abismo.

A responsabilidade recai sobre todos nós. Em maior ou menor grau somos parte do que acontece, muito embora deva admitir que mudar o que se estabeleceu há 4.000 anos atrás seja um parto, só mesmo uma pá de cal gigante pra zerar e começar tudo de novo. Estamos fazendo a nossa parte sim, já somos muitos vibrando na mesma frequência e pensando da mesma maneira - mas daí a achar que podemos mudar a personalidade da raça, que representa 99,99% do que aí esta (padres pedófilos, matadores de aluguel, biscateiras, sequestradores de bêbes, autoridades corruptas, gente mesquinha, invejosa, fofoqueira, competitiva, aduladora, preconceituosa, egoísta, orgulhosa, pedante) vai uma grande distância. O caos é reflexo desse ratsro de mediocridade e ganância que deixamos pelo caminho, a pegada que deixaremos na passagem por esse planeta. Lindo, não?

O segredo consiste em saber evoluir do 216 para 504 e daí para 3.060 com dignidade, fazendo valer os princípios que se estabeleceram no início. Passa por educar, dar assitência, abraçar a causa comum. Simples. Passa pelo berço, e o berço é o começo. Passa pela foice e pela oportunidade de começar tudo de novo.

O resto não passa de utopia. O Rio que o diga.



Crédito da foto: Harpagonis