21 de fevereiro de 2011

O Último Mensageiro - Introdução


São Paulo me recebia com o costumeiro ar de indiferença em uma nebulosa manhã de novembro. A chuva pedia passagem em meio a tímidos raios de sol, que como pálidos frisos transpunham a barreira cristalina das nuvens em esforço inútil, desmanchando-se pelo caminho antes de atingir o solo. Quadro desolador para um mês de primavera, pensei, o sol a pino e o calor tranqüilizante teriam sido mais convenientes para a aterrissagem. Eu me perguntava que tipo de transtorno estávamos causando ao planeta para que reagisse de maneira tão contraditória, indignado que parecia estar diante do descaso e da insensatez humana. Que tecnologia maligna era essa, afinal, que insistia em justificar seus erros em nome do progresso, comprometendo a mais básica das estruturas? Haveria de existir, em sã consciência, algo mais importante do que a própria saúde da Terra?







Lancei um suspiro no vazio e desviei o olhar, deixando os pensamentos de lado. Passei a admirar o campo, o vasto território organizado traçado em perfeito contraste. E não é que sabíamos fazer coisas boas também? Um pouco de engenharia e uma boa dose de bom senso para desenhar o imenso tapete verde e suas nuances, tons claros e escuros que ganharam evidência, saltaram aos olhos e então cederam, até desaparecer por entre as nuvens. E foi quando tudo estremeceu. O avião pareceu perder altitude e os luminosos de apertar cintos se acenderam. Entrávamos em zona de turbulência e os golpes de ar passaram a chicotear o 747 para cima e para baixo como folha de papel. Engoli seco e virei para os lados em busca de um olhar sereno, um sorriso amigo ou qualquer sinal que pudesse me acalmar, mas a passividade era geral. Rostos se escondiam por trás de temores procurando disfarçar a agonia, provavelmente a mesma que eu sentia, camuflando as primeiras ondas de pânico que ameaçavam irromper. Isso ainda duraria intermináveis minutos, o alívio geral só viria depois que o avião baixasse por entre o mar de nuvens e novamente a terra se fizesse à vista.






Pouco depois entrávamos em procedimento de pouso em Cumbica e confesso que só senti o coração desacelerar quando a aeronave tocou a cabeceira da pista, deslizou mansamente sob a chuva e parou com elegância ao seu final. Desembarque, Polícia Federal, banheiro e bagagem. E a surpresa de encontrar Thais a minha espera. Um leve abraço e um beijo que durou poucos segundos a mais do que o usual foram as marcas do reencontro, nada de sorrisos ou traços de saudade. O olhar soberano ainda me fuzilou com indignação, deu meia volta e se afastou apressado pelo corredor. Um pequeno instante de hesitação e também saí, acelerando o passo para alcançá-la já quase do lado de fora. Lembro-me de ter sido preenchido por uma onda de calor, não soube precisar de onde vinha, que lambeu cada célula do meu corpo como se o transformasse no próprio inferno.






A considerar os eventos da ida até que foi um bom recomeço. Nove dias antes, Thais havia me acompanhado até o setor de embarque para ali, em meio à multidão, exaltada e fora de controle, vomitar uma montanha de insultos. De insano e débil mental a perdulário e outras expressões que prefiro não mencionar, havia jurado que aquele seria nosso último encontro. “Pode apostar sua alma nisso, Abel!”, dissera, o indicador colado ao meu nariz. Com todos os caprichos que o destino era capaz de nos reservar, lá estávamos juntos novamente, sem desculpas ou lamentos. O orgulho não lhe permitiria tomar a iniciativa, ela esperaria até o momento em que eu dissesse “Thais, se eu contar você não vai acreditar...”. Mas ele, o destino, julgou não ser necessário. Ela logo poderia constatar com seus próprios olhos.













* * *













Adoro chuva. Quando pequeno costumava compor rituais imaginários pelo quintal ladrilhado da casa em que morávamos na Vila Mariana, o rosto voltado para o céu em sinal de agradecimento e os olhos fechados em sonhos. Os pedacinhos vermelhos, espalhados pelo cimento e contrapostos a outros menores, negros, pareciam recebê-la como bênção, dilatando-se em sorrisos a cada pingo. O cheiro do chão úmido logo emergia e ainda hoje, quando a chuva beija o asfalto, me lembro daquela época como se fosse hoje. Por outro lado, detesto dirigir na chuva, recordação de uma experiência não muito feliz que tive aos seis ou sete anos quando meu pai, dirigindo seu Fiat azul em um dia como esse, perdeu o controle do carro e saiu capotando. Conotação de sonho, flashes do horror misturados ao alívio repentino de constatar, como por milagre, uma família escapando ilesa do desastre. Minha mãe rezava, agradecendo a Nossa Senhora Aparecida pela graça alcançada. Meu pai, desconsolado sobre os cotovelos no meio fio, chorava como se tivesse perdido tudo. Eu? Bem, diria que acusei o golpe. E de maneira tão intensa que me tornei incapaz de dirigir em dia de chuva, a lembrança irrompia e com ela todo o desconforto. Nestas condições preferia tomar um táxi ou nem mesmo sair de casa e, confesso, nunca me esforcei para que fosse diferente. Neste dia, porém, a costumeira sensação de descontrole não se fazia presente. Eu me sentia confiante - motivado sobretudo pelos acontecimentos que haviam me conduzido até ali – enquanto caminhava ao lado de Thais pelo estacionamento. Ela, irritada, buscava abrigo no guarda-chuva que fazia questão em não dividir comigo. Eu, alheio à raiva, atirava-me à água que trazia de volta a realidade do concreto urbano, escorrendo pelo rosto e deixando as lembranças de menino soprar em meu coração. Quando alcançamos o carro, minutos depois, Thais deu a volta pelo lado do passageiro e atirou as chaves na minha direção. E acho que foi só mais adiante, quando já estávamos na saída esperando a cancela se erguer, é que tive a sensação de que algo ruim aconteceria.






O silêncio reinava absoluto, vez ou outra interrompido pelo ecoar dos trovões. O horizonte que se erguia à nossa frente era denso e negro e inquieto como se a noite, intempestiva, abrisse caminho. Thais parecia hipnotizada pelos pingos cristalinos que se chocavam contra o pára-brisa provavelmente revivendo, em algum lugar da memória, lembranças de um passado comum não tão distante. Eu conduzia o veículo com surpreendente tranqüilidade, certo de que uma força maior me guiava na jornada. Mas nem por isso ousei desafiar o destino. Ao contrário. Louvei o mau tempo na expectativa de criar equilíbrio, e o que veio em resposta foi a completa falta dele. Nos segundos que se seguiram vi minha confiança interior ser varrida, milhões de pensamentos se chocando em desordem sob o efeito da adrenalina que me inundava. Senti a transformação do campo energético ao mesmo tempo em que os pneus perdiam aderência. Tentei diminuir, mas o celta não respondeu. A película de água que se instalou entre os pneus e o asfalto foi crescendo, crescendo, e então me dei conta que já não podia controlar mais nada. Thais virou-se para mim e pude perceber naquele par de olhinhos assustados uma expectativa tão ruim quanto a minha. O carro continuou em movimento por conta própria, ameaçou rodopiar e eu então tomei a única decisão que parecia estar ao meu alcance naquele momento: pisei no freio com força. O choque veio em seguida, a batida oca e surda que jogou o que quer que estivesse à nossa frente a uma curta distância mantendo-o ali, quase colado. Eu havia acertado alguma coisa, mas... O quê exatamente? O carro ainda percorreu alguns metros e depois parou enviesado como se tivesse perdido o fôlego. Thais estava bem, eu um pouco trêmulo e desorientado, a cabeça por entre as mãos ainda presas ao volante. E então descemos.














* * *













Não sei o que se passa na cabeça dessa gente. Amo meu país e meu povo, mas quando se trata de desrespeitar padrões parece que somos mesmo campeões. É por isso que eu acho que as coisas não funcionam muito bem por aqui. Existe um caos camuflado, um processo de sabotagem inconsciente que age por conta própria quando se trata de responsabilidade e bom senso. Afinal de contas, pode existir algo mais insano do que andar de bicicleta à beira da estrada em dia de dilúvio? Um garoto e seus... Não sei, treze anos, talvez, agora estirado no acostamento. Descalço e ensopado. Inconsciente, porém respirando, o sangue escorrendo pelo nariz e algumas escoriações no pescoço. Do ponto de ônibus que havia ficado para trás todos correram para o local, dois minutos depois chegava uma viatura da Polícia Rodoviária. Pronto, o circo estava armado. Eu? Completamente perdido, situações sem prévio aprendizado costumam me deixar apreensivo. Mesmo assim, e agindo por instinto, me agachei ao lado do garoto. Não saberia dizer exatamente para quê, mas eu achava que de algum ponto deveria partir. Dei-lhe duas batidinhas no rosto, não houve reação. O moleque ia morrer ali mesmo, pensei, enquanto eu conseguiria correr alguns metros até que a multidão em fúria me alcançasse e desse início ao linchamento.






“Fique calmo”. Foi o que me lembro de ter ouvido assim que minha consciência fez a conexão com o mundo real novamente. “Chegue para lá, quero ver o estado dele”. Dois policiais haviam rompido o cerco formado pela multidão e estavam agora junto a mim. “Estávamos parados do outro lado da pista, um pouco mais para trás, e vimos o que aconteceu”, o outro emendou. “Você perdeu o controle do carro e saiu derrapando, chegou no acostamento e atingiu a bicicleta”. Não acredito! “Ele deve ter batido a cabeça na queda. E olhe essa perna aqui, houve fratura”. Meu Deus, onde tudo isso vai acabar? “Vamos removê-lo para a viatura. Pegue o seu carro e nos siga até o hospital”. Hospital? Eu não sabia se respondia, acatava em silêncio ou pensava em coisa melhor. Na verdade não me sentia em condições de pensar, mas isso começou a mudar tão logo me virei na direção da massa. Foi como se cada músculo fizesse o movimento em câmera lenta, as batidas do meu coração se misturando às vozes e se perdendo ao longe enquanto os pingos da chuva explodiam em meu rosto, transformando-se em milhares de novos pingos. Estava vindo. Isolei meu pensamento, pisquei mais forte e saí de cena.






Havia chegado o momento.






Fechei os olhos e os ensinamentos maravilhosos que eu havia recebido dias antes afloraram. Estendi as mãos para frente e voltei-as para o céu – parecia não chover sobre elas – e logo a energia se fez presente. A luz azulada e serena, a mesma que eu tivera oportunidade de acessar durante a viagem, tremulava por entre meus dedos. Ninguém pareceu notar, nem mesmo Thais, que havia ficado para trás no meio da confusão. A multidão nem parecia estar mais ali. Eu não ouvia suas vozes, não via seus rostos. Minha atenção estava centrada apenas no garoto e tudo que fiz foi envolver a perna fraturada por entre minhas mãos no instante em que os policiais se preparavam para removê-lo. “O que você pensa que está fazendo?”, um deles se antecipou e me segurou pelo braço, ao mesmo tempo em que parecia não querer impedir. Mantive as mãos naquela posição por alguns segundos, guiando meu pensamento para que a luz penetrasse na região e corrigisse o estrago. A aplicação foi rápida e em seguida o garoto despertou feito um coelho assustado. Levantou-se ligeiro, sem se dar conta que era o centro das atenções de toda aquela multidão e, sem apresentar qualquer sinal da fratura, limpou o nariz, montou soberano em sua bicicleta e saiu pedalando em disparada sob a chuva. Todos permaneceram ali parados, incrédulos. Olhos vidrados, cinqüenta ou sessenta pares, voltados para minhas mãos. De suas bocas saíam murmúrios que eu não conseguia entender, lágrimas brotavam com emoção. Duas senhoras fecharam seus guarda-chuvas, ajoelharam-se sob o sinal da cruz e se puseram a rezar. “Você faz idéia do que acaba de fazer?”, o policial disse, a expressão de quem não podia acreditar no que havia acabado de presenciar. Desvencilhei-me com delicadeza, abri um sorriso cínico e corri para o lado, alcançando Thais e a empurrando para dentro do carro. “Vamos”, eu disse, “ainda não estou preparado para os autógrafos”. Como que negando a cena, ela balançava a cabeça de um lado a outro. “Você faz idéia do que acaba de fazer?”, repetiu, as palavras carregadas de um sarcasmo desnecessário. Detive-me à porta, fixei o olhar nela por sobre o ombro. “Claro que sei. Vamos sair logo daqui”.






O silêncio parecia ter costurado seu último suspiro. E a chuva, ao contrário do que eu imaginava, não havia cessado.




5 comentários:

  1. ótimo como sempre!
    sentindo falta de suas visitas viu!
    ótima semana pra vc!

    bjo

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  2. Lindo espaço este seu!
    Virei mais vezes para o ler.

    Um abraço.

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  3. http://cantodecontarcontos.blogspot.com/2011/03/tem-sorteio-de-livro-no-canto.html

    Oi André! o livro é ótimo, estou feliz em poder divulgar.

    um beijo

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  4. vixe, lalei docê no blog

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  5. Olá,

    Muito bom!
    Não consegui parar de ler! Muito muito bom!

    Voltarei.

    Abraços

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