22 de maio de 2021

A TAL DA SOLIDARIEDADE HUMANA

A imagem ao lado correu o mundo esta semana. Trata-se do garoto Marroquino que, amparado por garrafas PET para não afundar em pleno Mediterrâneo, tentou alcançar Ceuta, enclave espanhol em território africano que faz fronteira com o país árabe. Tudo em vão. Ceuta é cercada por um muro de pedras (a sequência das imagens, com o garoto saindo da água e tentando escalá-lo, quando é contido pelos soldados que patrulham a região, é desoladora) e os imigrantes ilegais que chegam à região são 'devolvidos' à origem. O sonho de uma vida mais digna ou um mundo mais justo, como clama o Blog, termina ali.

A mãe do todos os males é a insensibilidade. É ela quem cria abismos intransponíveis por conta da voracidade humana em fazer de sua passagem por este planeta um acúmulo desmensurado de riquezas e afeta, em última instância, toda a dinâmica comportamental da raça. Não é por outra razão que geramos imperadores incendiários, ditadores fascistas, governos corruptos, mafiosos, torturadores, assassinos profissionais e toda sorte de "ser humano" que enxerga, na desgraça alheia, o trampolim para seu próprio engrandecimento. Isso ocorre porque é assim mesmo, porque nunca se pensou de outra maneira ou se estabeleceu um sistema que valorizasse essa tal de solidariedade humana, em que pese ações de pequena expressão, espalhadas aqui ou ali, passa desapercebida.

Significa que, como raça, somos um verdadeiro fracasso. E tudo por conta de uma simples, porém consistente razão: não somos capazes de estender os ideais de vida criados para nós mesmos àqueles criados sob nossa semelhança. Uns podem, outros não. E ponto. São tantos os abismos que já encaramos essa dinâmica com certa naturalidade, afinal de contas não podemos ser responsáveis por todos a nossa volta...

Não? Um ser humano, séculos à nossa frente, teve a oportunidade de visitar um berçário em uma galáxia distante. Ficou impressionado ao ser levado a um espaço do tamanho do Maracanã em que havia milhares e milhares e mais milhares de bebes dispostos, todos calmamente dormindo em seus bercinhos. 

"Como funciona isso?", ele perguntou a seu anfitrião. 

"Muito simples. Quando um bebe nasce, nós o recolhemos e o trazemos a esse local. Aqui recebem todo tipo de assistência e crescem felizes e saudáveis."

"Como assim? E como os pais fazem para saber quem são seus filhos?"

"Não fazem. Aqui todos são nossos filhos".

Para nós, os míopes. 





 


 

16 de maio de 2021



 O POÇO

Iván Massagué em cena de 'O Poço'



Cuidado: spoilers!

 

Deve ter sido por volta de 1973-1974 que que tive meu primeiro contato com a Fórmula 1. Lembro-me bem porque, à época, o Brasil era representado nas pistas pelos ídolos Emerson Fittipaldi e José Carlos Pace. Mas lembro-me bem, também, porque me questionei, do alto dos meus 10 anos, porque homens se dispunham a ficar entalados dentro de um carro, dando voltas e mais voltas em um circuito até que um deles chegasse em primeiro, enquanto no meu país pessoas pediam esmolas pelas ruas. A imagem que me vinha à cabeça - e melbro disso como se fosse hoje - era daqueles carros sendo abastecidos, o combustível a alimentar seus tanques, enquanto bocas espalhadas por aqui não tinham a mesma sorte.  Provavelmente pela primeira vez – e tem sido assim nos mais de 17.000 dias desde então – passei a me perguntar não somente o porquê destes abismos, mas como o homem estabelece suas prioridades.

É por esta razão que filmes como ‘O Poço’ (Espanha, 2019) tem um significado mágico para mim. Vejo, através de olhos alheios, questionamentos parecidos e crítica mordaz ao nosso modelo, que antes de social é sobretudo individual, quando muito ampliado a pequenos grupos como família, amigos, cooperativas, sindicatos ou partidos. O resto é apenas o resto, seres inferiores cujo trágico destino foi traçado por uma entidade etérea - comumente chamada de Deus - e que permanecem fora do nosso campo de visão para que a vida (a nossa, não a deles) seja perfeita.

A trama do filme gira em torno de uma prisão de 333 níveis (vide foto), cada um deles funcioando como uma cela. Nela habitam dois prisioneiros e não há qualquer área de respiro, apenas um enorme vão central por onde transita uma plataforma com alimentos. Os prisioneiros trocam de nível, a cada de mês, de forma aleatória: podem estar no nível 3 em um mês e no 157 no mês seguinte, podendo voltar ao 43 no outro. Não há mérito ou pena, apenas acaso.

A plataforma sai do topo da estrutura com os mais variados e requintados alimentos, preparados cuidadosamente por profissionais de cozinha. Vai do primeiro nível (1) ao último (333), permanecendo dois minutos em cada um. Este é o tempo que os prisioneiros dispõem para comer, não podendo armazenar nenhum tipo de alimento sob pena de toda estrutura sofrer sanções como frio ou calor intenso que os levará à morte. Desta forma, prisioneiros do nível 1 tem acesso a todos os pratos, vinhos e doces. Fartam-se até o encerramento dos dois minutos, quando a plataforma segue para o segundo nível com o que sobrou e assim por diante. Os personagens centrais encontram-se, no início, no nível 58 (ou algo assim), e quando a plataforma chega até eles já houve um estrago considerável. São praticamente restos de alimentos, pratos e copos quebrados naquele clima de fim de festa medieval que só vai piorar dali para baixo. É de se supor que os próximos níveis não terão comida até que a plataforma passe novamente no dia seguinte, provavelmente sob a mesma condição.

Paralelo com o mundo moderno: países da união europeia estariam nos níveis 1, 2 ou 3, enquanto os da África subsaariana estariam nos mais baixos. Uns comem, outros não. Ou, de forma menos abrangente, olhemos para dentro de uma sociedade – por que não a nossa? – em que a elite se lambuza com alimentos que à periferia não chegam. Mas afinal, não somos um coletivo? Por que uns tem acesso aos alimentos e outros não? Por que países ricos alimentam suas populações enquanto uma pessoa morre de fome a cada 4 segundos no mundo, de acordo com dados da UNICEF? 




Porque quando a concorrência impera, ninguém se importa. A lei do mais forte se impõe, como se a busca por sobrevivência implicasse em eliminar concorrentes como se não houvesse alimentos para todos. Não somente há, estocados em gigantescos silos ao alcance dos privilegiados, como muitas vezes são descartados por estragam ao longo do tempo. Em um ambiente competitivo você corre o máximo que pode, procurar ultrapassar quem está a sua frente e pouco se importa com os que ficaram para trás. São invisíveis.

 

De volta ao poço. Goreng (Iván Massagué), o personagem principal, pede aos prisioneiros do nível inferior ao seu que comam o suficiente para saciar a fome, deixando alimento para os próximos níveis. Claro que é ignorado (supondo que conseguisse subverter a lógica haveria comida para todos, mesmo nos níveis inferiores). Na falta de colaboração, ameaça: se não fizerem o que ele pede, separando uma parte da comida para os demais, vai cagar em tudo que estiver na plataforma antes que ela deixe seu nível. Funciona. Se Goreng fosse o Estado, poderíamos pressupor que ameaças exercem papel preponderante no equilíbrio, e que de fato seguir as regras, com punição em caso de violação, funciona. Não se trata, portanto, de agir com espontaneiedade, como deseja um dos personagens. Na prática, somos instados a agir de forma altruísta sob coerção,  já que em meio à corrida não temos olhos para o conjunto. 

É por esta razão que, na sequência, Goreng e um outro companheiro decidem, armados com barras de ferro, descer junto com a plataforma andar por andar para que as duplas de prisioneiros comam somente o necessário. Como não contam com a boa vontade de todos (principalmente os que se encontram nos níveis mais altos e que querem desfrutar os privilégios, justamente por já terem estado nos mais baixos), vão abatendo os ‘não solidários’ pelo caminho. A punição vai, portanto, além, tirando a vida de quem não se dispõe a colaborar com o coletivo, ao mesmo tempo em que demonstra o papel do estado totalitário que elimina os inimigos do regime.

 

A bondade humana, em essência, não existe. Ela atua quando coagida, quando a inação leva à punição. Se você não concorda, é porque - amém - age de maneira diferente, é solidário e se preocupa com seu semelhante. Mas se você fosse regra, e não exceção, a maioria dos conflitos ao redor do planeta estaria resolvida. Enquanto isso, insistimos nos mecanismos de exploração e de luta ao invés de nos irmanarmos (na ideia do filme, distribuir alimento para todos). Poucos, como Goreng, tem essa capacidade, mas todos sabemos como a história termina...